quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pedro Gabriel Ferreira:

E O CORDEIRO

JAZ

NA RUA DA

MOEDA

 

pro meu pai, pra minha mãe, e pra você.

“Diga-me:

Quantas batidas do teu coração faz que você não fode?

Uísque escorrendo por trás do teu cabelo úmido

Bitucas & Sofá & A Janela Do Teu Apartamento Mau Iluminado

Tudo isso, tudo isso, é Iluminação, meu amigo.”

- Alberto Cigano: A Macaxeira Semiótica

1: E NO PRINCÍPIO HAVIA

Nasce a Cidade do Homem nasce da Cidade.

Toda essa estrutura de pedra & sangue que paira acima de nossa prepotência, segue voando através do materialismo, metamorfosicamente imutável, vomitando espaços vazios que se preenchem quase que imediatamente pela praga que a matém funcionando. É assim, é assim que é, kid, não adianta ficar fazendo socioetnohistorigrafia: aliás, essa merda aí sai mesmo é do cu dela.

Saiu, pelos poros ou vomitado ou cuspido, um dia, José, o mesmo desde o séc. 19, já preparado pelo meio que é essa sua Mãe Louca flutuando imemoriavelmente, uma vez Zé hoje Joe Sevirino, herói moderno que é antes de tudo um fraco. Sua Mãe abençoou-o dando todo Seu corpo para ele viver, cobrindo-o de Suas lágrimas com as pontes sujas e alimentando-o com os bichinhos que pulavam do mangue, pretinhos pretinhos que nem Seu meninote. Joe cresceu pronto franzino, o que já era de ser esperar, e a bullshit naturalista retoricaria tratados joerísticos, o que não nos interessa aqui: sabemos eu e você como enche o saco um menino de rua.

Mas chocam-se as contradições e a vida de Joe destina-se a algum ponto:

2: O TRÁGICO FIM DE TODOS NÓS

Joezito um dia cheirou tanta cola de sapateiro e a porra toda que seu cérebro entrou num colapso quixotesco e ele desapareceu na Rua da Moeda pra dentro de uma outra dimensão mental deixando apenas como prova de sua existência passada uma sandália havaiana e um bilhete de amor de sua antiga namoradinha Jéssica que após o trágico fim do seu nego chorou histericamente até que passou a nóia e ela voltou pro seu ponto no Cais de Santa Rita. Hoje em dia ela não sabe mais de Joe existiu ou não.

notícia extraída da Folha de Pernambuco

3: uma viagem lisérgica pra dentro da barriga da Morte

Flutuando, flutuando, flutuando, eu entro pra dentro de uma barriga, as contrações ao contrário me devolvem pro que antes havia sido um mundo inteiro, eu chego, chego, chego, é como se eu tivesse comendo alguém tudo apertadinho e quentinho, a vontade que dá é de me encolher e simplesmente gozar, gozar, gozar, como se fosse a primeira vez, a primeira punheta, é sempre a mais sagrada de todas gravada no seu inconsciente para todo o sempre, a descoberta de que você é parte daquilo que te fez, você de repente é tudo aquilo que foi antes de você, é como virar um rei ou um deus, sei lá, ao descobrir o que é na verdade a vida, e é isso também a morte, voltar pro início de tudo, descobrir que o que você não é é aquilo que você não fez mas que de um jeito você fez porque é tudo igual no final das contas, morrer é isso, como se fosse a primeira punheta, a primeira vez que você goza, morrer é masturbação, morrer é masturbar-se, masturbar-se, masturbar-se.

É isso e muito mais, meu querido Joe, você perceberá isso quando abrir os olhos, finalmente abriu, o que você vê? O sol está brilhando quente refletido na areia clara, não existe mais a Cidade, onde você está, está morto é o que você pensa, mas se morrer é voltar ao início, é melhor você tentar perguntar: mas que início? É as origens, mô véi, acho que é isso mesmo, o sertão é dentro da gente, não é? Se você morreu ou não isso pouco importa agora: procure um telhado pra se cobrir que o sol ta foda mesmo, uma sombra pra pisar, as havaianas ficaram do outro lado do muro, vai criar bolha na sola do pé, vai estourar, virar ferida, gangrenar e ai você vai morrer mesmo, vai meu filho, se mexa que quem fica parado é poste, pra trepar a gente anda pra fazer a gente manda?

Eu bem que tentei fazer literatura moderna.

4: EU NÃO ACREDITO EM BRUXA, MAS QUE ELAS EXISTEM, EXISTEM

A casa era de barro, manchada de melancolia e de adeus.

De dentro vinha uma escuridão que abocanhava a música, deixando apenas o silêncio de sobra, o que tornava tudo muito bizarro. Mas Joe era cabra macho de agüentar botada de menino mais velho sem chorar nem uma lágrimazinha só. Andando na ponta dos dedos, advertido, pra não foder com o pé, chegou pertinho da sombra e gritou: ô de dentro!

Do silêncio escapou uma voz de velha medonha que nem bruxa gritando vá simbora que sinão eu te capo porra, mas Joe era cabra macho de fazer blowjob pra ganhar dinheiro pra poder comprar heroína porque ele não teme virar junkie não senhor e se manteve firme na frente da porta pra gritar de novo ô de dentro!

A bruxa notou a macheza de Joe e saiu pra ver quem era o cabra, mas quem viu foi Joe que ela não era bruxa não, e sim uma velhinha sertaneja dessas com cara de cu de tanta ruga, inofensiva inofensiva e aí Joe ficou mais quieto, porque apesar de não ser medroso nunca tinha visto bruxa real que na verdade não fosse travesti. A velhinha olhou pra Joe de cima pra baixo e disse:

- Meu filho, desculpe essa véia, mas é que aqui tá cheio de bandoleiro desordeiro covarde que entra nas casa dos fraco pra tirar os pertence dos outro...

- A sinhora me dá água?

- Ô meu filho, dô sim, mas entre aqui, chegue.

Por dentro era pior ainda. Tudo era grande, mas fodido e sujo. Joe acompanhou a velhinha até a cozinha, que só tinha uma jarra de barro grande e nada de comer. A velha pegou água da jarra de deu pro nosso herói beber, e ele se deliciou. Ai perguntou:

- A sinhora vive mais quem?

- Ah meu filho, eu vivo sozinha. Meu marido morreu faz tempo e meus filhos tão tudo em São Paulo, só que nunca me deram notícia depois que se foram. Agora a vida ta difícil porque eu num posso mais trabalhá, meu corpo num deixa mais, e eu vivo das ajuda dos outro. Mas com esses bandoleiro alarmando a região ninguém mais se atreve a vir pra cá com medo de que eles pegue e coma. A comida acabou e eu não sei mais como vou ficar, acho que só o que me resta é esperar vir o tempo de eu ir me juntar mais meu véio...

Joe ficou com muita pena da velhinha que deu água pra ele. Pensou e pensou num jeito de ajudar, mas ele não tinha nada pra oferecer, que tava tão fodido quanto ela. No fim, só conseguiu pensar no básico:

- A sinhorinha disse que seu marido morreu faz tempo.

- Disse...

- Eu não tenho nada pra oferecer, mas se a sinhorinha quiser, eu tiro seu atraso.

Os olhos da velha brilharam, e seu sorriso contraiu toda a cara enrrugada num esgar sem dentes horroroso, o que fez Joe se arrepender de ter aprendido a falar.

Joe se despediu da velhinha ainda sorridente. Foi respondendo os acenos até que eles sumiram depois de uma curva. Viu uma pedra grande, sentou e chorou. Joe era cabra macho mesmo, mas pra tudo tem limite.

5: COISAS DO CORAÇÃO

Já se cansava o dia quando chegou Joezito à bagunça que se chamava de vilazinha. A bruxa era quem tinha dito onde achar a gente e tinha valido pelo menos por isso a pena ter (se) fodido. Tinha? Joe viu aquilo pouco e se lembrou da Cidade e ficou meio desconsolado pensando onde caralho é que eu vim parar, my god. Queria poder desmorrer e desnascer voltando pro corpo da Mãe, e pra poder esquecer esse freudinismo que ele sempre achara um saco, sentou no banco de uma bodeguinha pra tomar uma cachacinha e fumar um cigarrinho.

Ficou por ali, pitu numa mão derby na outra, olhando os sertanejos que escorriam pela terra batida, achando tudo aquilo mezzo melancólico, mezzo pitoresco. Mas reparou que de quando em quando passava umas menininhas gostosinhas, que a princípio animaram, mas depois fizeram lembrar de Jéssica, a amada que o abandonara pra ficar com a vida, e aí ele desanimou outra vez e chorou, mas um pouquizito só, pra que nenhuma dessas pessoas incompreensíveis zombassem do fato dele ser só um cara sensível.

Só que se o amor une a pitu separa, e foi quando depois de meia dúzia de garrafas ele viu uma morena faceira dos cabelos cacheados que ele levantou de súbito exclamando quando vê a perfeição o homem sábio se move morena do rabo grande eu quero ser o seu love e a menina bamboleou as pernas porque não há mulher por mais feminista que seja que não se desmanche por um poeta. Joe levou ela prum canto e comeu muito.

Quando o sol descansou e lambeu a cara de Joe ele acordou com os óio amargando e a boca que não enxerga nada, maldizendo do fundo da alma o filho da puta que inventou o só mais uma dose, eu agüento. Mas foi quando ele olhou pro lado que ele percebeu o quanto a realidade é maleável e que se a fenomenologia não convenceu muito foi porque ela não usou como argumento o elemento pitu. Do seu lado estava a mulher mais feia que ele já tinha comido, levando em consideração que a velinha estava mais pra uma espécie de gnomo. Feia e provavelmente muito sonsa ou cínica, pois não percebeu a cara de nojo de Joe e sorria como que apaixonada. De fato: acordou querido?, e Joe: eu queria que não!, e ela: sabe, eu nem ia sair de casa ontem, mas acho que o destino me fez mudar de idéia, e por isso eu resolvi passear pela rua, e Joe: eu queria que não!, e ela: sabe, você foi incrível ontem, o melhor de todo o mundo, e Joe, com o ego meio inflando: hé, eu queria que não..., e ela: sabe, faz muito tempo que eu pedi a minha deusa por um amor, será que você é ele?, e Joe, se levantando pra sentar pelado, pose de canalhão, acende um cigarro, dá um trago, sopra a fumaça: é que eu não costumo me apegar facilmente às pessoas...

Pra tudo há limite até mesmo pro coração in love, e essa a moça não agüentou. Com os olhos molhados de ódio e indignação levantou-se com tudo gritando papaaaaai e a porta explodiu com o bico de um gigante de chapéu terno e bigode gritando mas que porra é essa? Era o pai da moça e o que Joe não tinha como saber é que o gigante era o coronel da vizinhança que mandava e desmandava nas almas da região. Ao ver aquele neguinho pelado na cama com a filha pelada o Coronel ficou vermelho e babou: seu filho da puta, o que foi que tu fez?, e ela: ele me desvirtuou, paiê, e Joe: mas foi sem querer!, e ela: e não quer casar!, e o Coronel: agora tu vai ter que casar muleque, senão eu te capo e te fodo com teu pau, e Joe: eu caso, eu caso, eu caso!

Mas o Coronel não queria casar a filhinha com um menino de rua qualquer, feio sujo e pobre, e pensou em matar Joe de qualquer jeito, mas a filhinha ia ficar muito tristinha a coitada, e ele teve que usar a superioridade intelectual dos mais ricos pra achar solução, achou: muleque, tu acha que as coisas são assim, que tu pode comer minha filha e virar meu genro pra depois ficar com minhas terras e meus sertanejos, tu ta muito enganado cabra safado, pra poder casar com minha filha vai ter que provar que é macho, não, nem adianta fazer essa pose agora, esconda essas suas vergonhas que homem nenhum banca o foda pelado na frente de outro homem, tu vai ter que fazer mais do que levantar o pau, vai ter que mostrar que tem coragem e que é forte, é o seguinte, minha cidade ta sendo ameaçada por uns desordeiros de merda que roubam as coisas dos meus súditos, ninguém consegue mais juntar nada aqui porque eles tomam tudo, e só quem tem o direito concedido por Deus de roubar dos outros aqui sou eu, então o senhor, seu maloqueiro, pra provar que é macho e digno da minha flor, vai ter que acabar com a praga desses bandoleiros malditos, porque senão quem vai acabar com a praga de tu sou eu mesmo!, e Joe que não podia fazer muita coisa concordou na hora e ainda fez pose de macho pra não ficar muito por baixo do discurso do gigante. Assim o Coronel solucionava o problema porque não tinha condições de Joe acabar com mais de duzentos bandoleiros, informação preciosa que ele tinha esquecido inocentemente de anunciar.

A vilazinha então viu nascer seu novo herói, e foi com um pouco de pena que ela viu Joe partir pra sua peleja fadada à desgraça. Mas antes de ir Joe subiu num palanque e fez um discurso que ficou marcado pra sempre na memória do povo da vilazinha:

6: O DISCURSO ou Um Pouco de Material Didático Para os Formalistas, Estruturalistas, Semiologistas e Psicanalistas:

Introdução: blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.

Retrospectiva/ explicação/ contextualização: Homem x Cidade, Realidade x Fantasia, Vida x Morte, Juventude x Velhice, Beleza x Feiúra, Romantismo x Canalhice, Forte x Fraco = linguagem.

Verificação do horizonte de expectativas/ confirmação/ garantia do entendimento:

JOE

(= o menino/adulto, construção de uma personalidade, o caminho do herói, representação simbólica de uma pluralidade social/ psíquica, [ ] )

                            seta

A METEMPSICOSE

(transfiguração do ser: Joe é e não é; qual realidade é possível?)

                             seta

A VELHA

(figura maternal; iniciação sexual/ Édipo = indicação do caminho social)

                             seta

A VILA/ A MORENA

(projeção da realidade antes da transcendência: a Cidade e Jéssica)

                             seta

O CORONEL/ GIGANTE

(O pai: castração; força opressora, capitalismo, ideologia burguesa da possibilidade de escolha:)

  setas

Morrer = enfrentar                                                  Morrer = enfrentar

o Gigante                                                                             os Bandoleiros

                                                                                                 (desconhecida)

seta esquerda

             

O DISCURSO

(prova de coragem; metalinguagem; VERDADEIRA REALIDADE)

Finalização: objetivo: causar comoção; resultado: positivo; forma: blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá.

E tenho dito!

(aplausos, assobios e ovações)

7: DA GRANDE CORAGEM DO HERÓI E DAS CONSEQUÊNCIAS DESTA SUA FANTÁSTICA QUALIDADE

Nem mesmo o sábio Apolo tinha pena do destino do nosso herói e castigava seu corpo hercúleo com labaredas incandescentes. Este agüentava com fleuma sobre-humana o calor opressor, protegendo-se apenas com um chapéu de couro presenteado pelas mãos virginais de sua amada noiva. Olhou para o horizonte filosoficamente e seu olhar presenciou os perigos que a terra inóspita e vermelha como sangue preparava para ele. No entanto, seu coração não estremeceu nem por um instante ao defrontar-se com a ruína dos mortais, e o herói subiu em cima de um rochedo monumental exclamando:

- Não temo fera, fúria ou foice! Antes a morte honrada do que a vida desmerecida! Que venham os vilões, os desastres e os Fados: não importa o que me aconteça, hei de vencer! Sou bravo, sou forte, sou filho da sorte!

A Natureza toda recuou ante a bravura do herói; mas o horizonte continuava à frente, a desafiar sua coragem. O herói seguiu adiante, sem recuar ou desistir, e atravessou precipício, floresta e montanha. Os pés calejados vertiam sangue, o suor escorria por todo seu corpo, o cansaço era terrível; aves de rapina rodopiavam sobre sua cabeça agourando sua contenda, esperançosas de que se tratasse de mais um reles humano comum; mas morreriam de fome se continuassem a esperar que o herói perecesse, pois não poderia chegar assim a morte a um semi-deus e seu destino era maior do que poderia esperar a sua vã sabedoria.

Chegou a noite implacável no mesmo instante em que chegou ao esconderijo dos bandidos o nosso herói. O vigia do bando assustou-se ao perceber que se aproximava tão imponente figura, e, tremendo de pavor, só conseguiu perguntar:

- Quem vem lá?

Saiu da escuridão o herói, e o pobre lacaio quase desmaiou de pânico. Nesse momento poderia o herói ter esmagado o crânio do serviçal com seu punho titânico, mas por ser piedoso, apenas respondeu à pergunta olhando de cima com sua voz de trovão:

- Sou o herói, defensor da justiça e protetor dos fracos, e meu destino é destruir os perversos e acabar com a vileza. Mostrai-me teu mestre, fétido gatuno, e deixá-lo-ei viver como prova de minha magnitude e generosidade!

O pobre diabo não teve coragem para responder, destituído que estava de forças. Mas num esforço homérico, voltou-se e conduziu o herói até a toca dos bandidos. Chegando lá, gritou pelo seu chefe com voz esganiçada e este foi seu último ato, pois logo depois caiu morto de esgotamento.

O chefe do bando era um homem alto e poderoso, altivo em sua maldade e capaz de matar com apenas um olhar. Sua visão encontrou com a do herói, e o mundo pareceu parar enquanto esses dois gigantes se mediam mutuamente. Finalmente o vilão falou:

- Quem és tu, que te atreves a adentrar na morada do grande Siegfried von der Krieg?

E o herói, magistralmente:

- Sou o herói, defensor da justiça e protetor dos fracos, e meu destino é destruir os perversos e acabar com a vileza. Viajei milhares de léguas desde a vilazinha até aqui, com o objetivo de aniquilar de vez por todas com toda a injustiça que vem sido cometida!

- Então tu vieste da vilazinha? – perguntou Siegfried von der Krieg entre os dentes. – Homens!

E então, como que surgidos das profundezas do Tártaro, apareceram os 200 capangas do vilão, vestidos em trapos e empunhando armas afiadas; estavam mais para bestas atrozes do que para homens, imundos e sedentos de sangue e morte, seus olhos faiscando na escuridão tal como criaturas infernais que espreitam a vítima, babando e cuspindo animalescamente.

Ao encarar tal cena aterradora o herói respirou fundo, invocou as Musas e preparou seu melhor discurso:

- Já vos disse anteriormente, sou o herói e não temo o perigo. Travei milhares de batalhas com a tormenta, com a desgraça e com a loucura. Meu destino é exterminar a injustiça, e creio que jamais vi tanta injustiça antes e toda minha existência. Claro está quem comete toda essa miséria que presenciei: os habitantes daquela vilazinha, os verdadeiros vilões em ambos os sentidos das palavras, comandados pelo gigante Coronel que explora e vive da desgraça alheia. Não esperava encontrar-vos neste deplorável estado, vivendo na miséria e na sujeira, sem ter o que comer e vestir, sem o abrigo de um teto para se proteger da chuva, do vento e do frio, sem um lugar para chamar de lar, separados da sociedade e dos bons costumes. Neste lugar esquecido mesmo pelo bom Deus, pai de todos nós, estais vós, encolhidos como animais acuados, protegendo-se da caçada implacável daqueles que vos oprimem, temem e odeiam. Consideram-vos monstros, assassinos e animais, mas não sabem que na verdade eles é que são os monstros, os covardes, que tiraram de vós todo o direito que qualquer filho de Deus possui de conviver pacificamente entre os seus irmãos: é fácil olhar para um mendigo e chamar-lhe de besta; o difícil é continuar mantendo a dignidade quando não se tem o que comer e onde morar. Gritam e praguejam quando vós tirais-lhes de quando em vez algo para comer, algum pequeno enfeite para se produzir, ou quando tendes relações carnais à força com alguma de suas filhas; mas parecem se esquecer que a culpa é toda deles, que vos negaram tudo isso, que vos colocam à margem, que resolveram, por preguiça ou por maldade, simplesmente colocar de lado e fingir que não existe um problema que eles mesmos, junto com esse sistema socioeconômico dominador e anti-humanista, criaram. Não, meus queridos, meus irmãos, não permitirei que essa injustiça continue: vim de muito longe, enfrentando o sol implacável, as montanhas abomináveis, a Natureza destruidora, para poder finalmente acabar com esse abuso. Pois que vim, na minha condição de herói, guiar-vos pelos caminhos terríveis por mim já desvendados e mostrar-vos o melhor lugar para atacar a vilazinha, seu ponto de menor proteção, e destruir para sempre aquela corja de opressores, juntamente com seu líder, o tirano e inumano gigante Coronel. E assim, meus pequenos, poderemos finalmente construir uma sociedade melhor para os que sofrem injustamente, e teremos um merecido lugar para chamarmos de lar, sobre a proteção da Justiça na terra e de Deus nos céus. E tenho dito!

A poderosa voz do herói ressoou por toda a toca. Seguiu-se um silêncio profundo, no qual o herói, com o peito estufado, olhava triunfante para todos aqueles homens, que por sua vez olhavam admirados o herói. Mas logo o silêncio foi quebrado por milhões de aplausos, assobios e ovações, e os homens gritavam em coro: “Herói, herói, herói!”. O herói tornou-se brilhante como um anjo, fez um sinal para seus seguidores alucinados e disse: “Sigam-me os bons!”. E os conduziu em direção à vilazinha, para travarem sua última batalha contra a crueldade, através de montanha e floresta. Mas quando chegaram ao precipício o herói se esqueceu de avisar o que estava adiante, e como a escuridão da noite ainda era profunda, os 201 homens não viram onde pisavam, caíram do precipício e morreram todos.

Na vilazinha fizeram festa por uma semana em homenagem ao grande feito do herói.

Sete Dias no Cabaré:

uma peça dramática composta para Joe e orquestra

8: CENA PRIMEIRA:

O bordel de Pierre Tabaca, o puta mais chic de toda frança. Vozes entrecortam a música sincopada: num palco decorado com papel crepom, um trio de forró arrocha um avant-garde de foder. As putas no colo dos homens de bem no colo das mulheres de bem. A festa já dura 6 dias. Surrealisticamente bêbado o gigante sobre no palco com um copo de scottish whisky com gelo de água de sanitário. O copo erguido parece mais segurá-lo do que ele o copo. Um brinde a Joe:

CORONEL:

Quero propor aqui um brinde ao meu novo genro, um filho da puta (com todo respeito à sua Mãezinha) macho de verdade, o homem que limpou nossa vilazinha daqueles bandoleiros de merda, José Severino, o nosso Joe!

OS APLAUSOS:

Êêêêêêêêêêêêêêêêêêê!!!

O GAIATO:

Êêêêêêmánocuêêêêêê!

JOE:

(modestamente) Meus queridos, não precisa tanto. Só fiz o que qualquer homem de bem, o que qualquer homem apaixonado faria. É, Ferreira, a minha puta ta ali encostada.

MORENA FACEIRA DOS CABELOS CACHEADOS:

(orgulhosa) Esse é meu macho.

JOE:

Cala a boca, sua vaca.

OS SÁDICOS:

Bate nela Joe, bate nela!

MORENA FACEIRA DOS CABELOS CACHEADOS:

(excitada) Bate mesmo meu nego, bate gostoso!

JOE:

(modestamente) Ok meus fãs, se vocês insistem, eu bato. Mas saibam que como qualquer ser civilizado, eu não gosto de violência sem propósito.

OS APLAUSOS:

Êêêêêêêêêêêêêêêêêêê!!!

Joe agarra a noiva pelos cabelos, que geme de tesão. Dá uns tapas na cara dela, cospe e boceja. Ela pede mais. Ele chuta ela na barriga, ela se contorce de prazer. Ele apaga um cigarro no umbigo dela, ela grita, ele se anima e pisa nas costelas dela. Ela pede mais. Joe, de pau duro, dá uma cabeçada no nariz dela, uma rasteira e quebra uma cadeira nas costas dela. Eles estão quase lá. Ele arranca as unhas dela, dá marteladas nos seus ombros, marca ela com ferro quente e finaliza quebrando os dentes dela no meio-fio. Os dois gozam e se deitam abraçados no chão.

CORONEL:

(emocionado) Meus pombinhos...

PIERRE TABACA:

(afetado) Ces´t l´amour... Nosso Joê é um rapaz que gosta do que é bom...

JOE:

E você sabe o que é?

PIERRE TABACA:

Mais do que você pensa, garçon.

JOE:

E o que você vai fazer?

PIERRE TABACA:

O que você quiser, mon cherrie.

JOE:

Vem com tudo então!

Pierre Tabaca levanta a saia e aponta seu caralho gigante. Joe a principio se assusta, mas depois se rende: Pierre Tabaca o enraba como se fosse um puta qualquer. Joe resiste bravamente, mas não agüenta até o final e rejeita.

JOE:

(eufórico e ofegante) Viado filho da puta, tu não sabe é de nada!

PIERRE TABACA:

(arrogantemente) Quem não pode se morde.

JOE:

(sobe no palco e acende um cigarro) A verdade, ladies and gentlemen, é que não nasci pra transgredir. Assumo minha condição de burguês, cristão e heterossexual.

OS APLAUSOS:

Joe é nosso herói!

O PAI DE SANTO:

Axé!

O TRIO DE FORRÓ:

Djiiinnnn... zaragudêgo, baracutibum, dá! Perumpempem, baragudadodegodegoziricundegogadagoberum... diguridadiriguidu!

O NARRADOR:

Freneticamente desenrola-se a vitória. Um pequeno anão cospe fogo no céu crespo do bordel, que se delicia com a pimentez. Chovem; ou melhor, chove-se. A lucidez se esconde nos buracos dos ralos, envergonhada. The muffin man e The fool on the hill fazem um 69 em cima do colo de um crítico de arte. Ele se masturba, voyeour, até gozar e se limpa no caderno de cultura de um folhetim. As pessoas sorriem. Alguém choca ao se abrir ao contrário, mas ninguém repara. Faxineiros escorrem de rodo suor e vinho. Estouram um champanha: Joe no colo do gigante parece um boneco de ventríloquo. Pedro Noiado nóia; ele pede pra cagar e sai de fininho. As pessoas sorriem. Um grupo de escoteiros pede uma colher pra ferver heroína; eles se picam e transformam numa gosma profundamente púrpura; um pedófilo aproveita e bebe tudo. Ninguém é inocente. Agora alguém é, mas foi embora. Olhares se destroem ao se refletirem; eles só queriam alguém pra amar. Uma pomba-gira sobe no palco pra tocar violino. Isso também é dialogo.

9: O DEBATE ou Uma Pequena Ajuda a Todos Os Ignorantes

Um Crítico: Mas que porra é essa?

Outro Crítico: Isso é kitch meu irmão, isso é kitch!

Mais um Crítico: Me parece muito mais algo meio beat...

O Primeiro Crítico: Cala a boca porra, tu não sabe é de nada!

E Mais um Crítico: Vejam bem, cuidado para não cair no impressionismo...

O Outro Crítico: Aborto modernista; não sei nem se é literatura!

O Mais um Crítico: Concordo com nosso colega, a gente devia estudar melhor a estrutura, se ater à ciência, pra poder chegar a uma conclusão...

O Primeiro Crítico: Ah, não vem com esse papo estruturalista não.

O Mais um Crítico: Não ponha palavras na minha boca.

O Outro Crítico: Se for, é claramente literatura marginal.

O E Mais um Crítico: Conseqüência da pós-modernidade...

Um Crítico Inteligente: Amigos, calma, não se desesperem que eu explico; isso é Picarianismo.

Todos Os Ignorantes: o que?

10: CENA SEGUNDA:

A pomba-gira violinista toca paganini. Junta-se a ela um Tupi, que antes tocava alaúde, mas que modernizou-se e agora toca violão. Joe larga o charuto para escutar mais de perto; a música delicia sua erudição.

JOE:

Ah, a Arte! Como podemos viver sem ela? A Arte é o que nos faz humanos, que nos une com o Sublime, com a Beleza e com a Verdade! Não temos artistas por aqui? O que é a elite sem a arte erudita?

O UFANISTA:

Nós temos o nosso poeta!

JOE:

Onde? Tragam-nos o poeta!

O POETA:

Meu herói, estou aqui!

JOE:

Ó, meu poeta, derramai sobre nós tua sabedoria!

O POETA:

Quero vos falar, queridos, sobre a nova poesia que aflora nos mais altos círculos poéticos! Quero falar-vos de nós, os novos poetas, o que queremos e o que trazemos de novo e de único ao Cânone Literário!

O CABARÉ:

Falai-nos, Ó, menestrel!

O POETA:

(anda até o centro do palco; luz única em cima dele) ARTE é shape. Shape é carne. Carne é sexo. Sexo é arte.

Nova Poesia: defesa do que é mais humano. A linguagem mais sublime do que há de mais grotesco: a verdadeira dialética de nossa existência. Arte pelo gozo pela arte.

Queremos a melodia dos gemidos a propagar-se em ondas pelo que há de mais filosófico nos conventos e de mais religioso nas academias. O estalar de hímens como um Kyrie Eleison para nossa moralidade ocidental. Os neologismos de uma língua feroz movimentando-se habilmente até prazerar-nos com o orgasmo. Mente sã corpo são.

Nova Poesia: o arco de Jean Luc Ponty a masturbar as pernas abertas da Retórica. Sublimação de Eros. Síntese do instinto e da razão: a verdadeira poesia humana.

Queremos mais do que o simples êxtase estético: queremos a junção da carne com o espírito, queremos marcar o livro da história literária com sangue, suor e esperma, queremos a morte da ignorância, queremos o materialismo poético, queremos o pior, o mais sujo e o mais pérfido, queremos o mais vil, o mais orgulhoso, o mais humano.

Só a putaria nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Alfabetize-se!

UM ACADÊMICO:

(enojado) Ora, mais isso é desprezível!

JOE:

(irritado) Como é? Quem é tu pra falar isso do poeta? Mas quem diabos foi que deixou essa escória entrar? Vamos, guilhotinem esse idiota!

Uma trupe de palhaços segura o acadêmico pelos braços e empurra sua cabeça na guilhotina. Revoltado, ele ainda exclama, antes de ter sua cabeça decepada:

UM ACADÊMICO:

Isso não fica assim! Vou colocar tudo isso no meu relatório final!

A GUILHOTINA:

Liberdade, Igualdade, Fraternidade! Tchak!

JOE:

Mas por que pararam a música? Vamos, toquem, eu quero animação!

O TRIO DE FORRÓ:

Xerungudegunburigudiguduraguterecutecutirigudagudummmmmmmmm... parurá!

A POMBA-GIRA VIOLINISTA:

Ziiiimmm... Tirirurin, riririmm...

O TUPI MALANDRO:

Blémblémblóm... tchantchentchun, blimblomblim!

SCHOEMBERG:

Sie spielen sehr gut, nicht wahr?

JIMI HENDRIX:

To achando que falta um pouco de feeling... que cê acha, Arrigo?

ARRIGO BARNABÉ:

Eu AchO Do CaRAlhO!

JOE:

(inspirado) A poesia e a música são as artes mais sublimes que nossa criatividade já pode inventar: uma por dizer tudo e a outra por não dizer nada. Em ambos os casos nós podemos nos alegrar e apreciar sem remorsos a sua completa inutilidade. E se nos identificamos tanto com elas é porque, nesse aspecto, elas nos representam de maneira especial. Pois é o que fazemos, não é senhores, não é essa a nossa especialidade? Sermos inúteis? Servirmos como modelo para os outros? Todos querem, no íntimo, chegar a não servir pra nada, é o topo da escala evolutiva. É o nosso Nirvana materialista.

OS APLAUSOS:

Joe é nosso filósofo!

JOE:

(modestamente) Meus queridos, não precisa tanto. Se digo tudo isso é porque o fato de estar com tão ilustres companhias é inspirador a qualquer intelecto superior. De onde venho não me seria possível ir tão alto nas minhas filosofias. De onde venho é tudo muito pequeno, muito mundano... mas... (indeciso) de... onde... venho?

O NARRADOR:

Para dentro de sua memória ele estava se perdendo. Uma embriagues passadista recortava pedaços de si e os apontava como se fossem de outro: confundia-se com ele mesmo. Juntava-se com a roda da ciranda que dançavam ao som de Henry Cow, mas era criança, adulto, velho e apaixonado. Confusão, loucura, realidade. Num momento sua perna grudou-se ao rabo de um cachorro, mas ele sacudiu a cabeça e tudo foi embora, só havia ficado a roda. A roda era uma só coisa. É fruto da bebida, do baseado, da carreirinha, do pico, dos doces e da porra toda, só pode ser, é preciso não viajar demais. Eu digo, ele diz, mas ninguém sabe. Estamos sós aqui; quem é inocente? Isso é dialogo, e só ele te salva. Meu nome é Bakhtin. Mas você... quem é você?

11: CENA FINAL:

1000 horas se passaram nos últimos minutos; as pessoas ainda dançam; Joe está cansado. Não sabe mais o que realmente acontece ao seu redor, se está sonhando ou se está morto. Os sorrisos se confundem com lágrimas e agonias, mas ele não consegue dizer quando é o quando de cada um deles. Joe sua frio; suas mãos tremem; seu coração bate rápido; ele não tá legal. Tenta recuperar a postura, abre um sorriso amarelo, respira fundo, e se levanta. Ainda está pálido.

UM PREOCUPADO:

(descontraídamente) Mas o que é isso, herói? Tá tudo bem?

JOE:

(suando) Tudo, tudo... só que ta abafado aqui dentro, né? Acho que vou ficar perto da janela um pouquito... pra me afresquecer.

Joe se arrasta-se à janela do bordel, procurando respirar os ar úmido que vem de fora. O vento sopra fantasmagoricamente lá fora, trazendo chamados de agonia.

O VENTO:

Búúúúúúúúúúúúúúúú...

Joe se assusta: parece reconhecer uma voz conhecida.

JOE:

(assustado) Quem está aí?!

UMA VOZ CONHECIDA:

Sou eu, Joe... Eu...

JOE:

(nervoso) Eu?! Eu quem?! Responda!

UMA VOZ CONHECIDA:

Joe... Joe... Joe...

Aproxima-se lentamente surgida das sombras a figura de uma menina. Joe se espanta.

JOE:

Jéssica!

JÉSSICA:

Meu querido Joe...

JOE:

Jéssica, minha amada, entre, entre, saia daí do frio, venha comigo!

Jéssica entra no bordel pela janela. Joe a abraça loucamente, cobrindo-a de beijos. Jéssica é um boneco de cera, mas Joe não percebe.

JOE

(emocionado) Jéssica, minha Quinha, onde você estava, onde? Como você chegou aqui? Ah não importa, não importa, o que importa é que você está aqui comigo, finalmente comigo! (volta-se para o resto das pessoas do bordel e fala alto) Meus amigos, meu povo, quero compartilhar com vocês uma alegria maravilhosa que acaba de me acontecer: minha amada Jéssica, meu único e verdadeiro amor, chegou agora e a partir de hoje ficaremos juntos para sempre! Não é fantástico, meus amigos e irmãos?

Mas para sua surpresa, Joe é recebido com silencio e olhares de ódio. Sem entender o porquê da reação, indaga.

JOE:

Mas o que acontece, vocês não estão felizes por mim?

CORONEL:

(puto) Você é um cabra safado! Um canalha, isso sim é o que é!

MORENA FACEIRA DOS CABELOS CACHEADOS:

(chorando) Uhúhú, papai, ele é um monstro.

JOE:

(admirado) Mas o que é que ta acontecendo aqui?

PIERRE TABACA:

(com desprezo) Mas o Sr. Joê é um ignorante mesmo, nom é? Pois não sabe o Sr. Que na nossa sociedade não toleramos bigamia? Pelo menos não bigamia oficial.

UM MORALISTA:

Nas entoca tudo bem, mas assim... Ugh, é repugnante!

O DALAI LAMA:

Vergonhoso!

O CRÌTICO:

Não vou nem comentar...

A CABEÇA DO ACADÊMICO:

Escreverei um ensaio acabando com você, seu porco!

OS SÁDICOS:

Bate nele!

A VELHA

Eu fiz ele comer a minha merda!

A GUILHOTINA:

Zup!

SCHOEMBERG:

Du bist scheiser!

O TRIO DE FORRÓ:

Baragudibum! Fuu fuuu fuuu fuuu!!

OS APLAUSOS:

TODOS:

Você não é mais nosso herói! Fora Joe, fora!

JOE:

(espantado) Ma-ma-mas... Isso não é justo, isso não é certo!

TODOS:

Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora! Fora Joe, fora!

O NARRADOR:

O caos toma conta do bordel. A multidão enfurecida espreme Joe contra a porta, e ele se encolhe, acovardado. As faces sombrias o assustam: algumas gritam, umas cospem, outras gargalham diabolicamente. Joe tenta se agarrar a Jéssica, mas ela se derreteu em seus braços; nada sobrou dela além de uma baba cor de carne. O mundo é vermelho. Numa transfiguração horripilante, todos se juntam na forma do Coronel, agora um gigante do gigante. Ele tem os olhos de brasa e solta fogo pelo nariz. Joe é uma criança amedrontada de novo. O Gigante o agarra com a mão e escarra nele. Joe chora e tem medo e pensa na Cidade. O Gigante joga Joe para longe e desaparece numa nuvem de ratos. A vitória acabou.

12: O SANTO

Caído no chão sua mente o escondia na noite. Ele tinha barro ao rosto, mas não se ousava mexer: mexer-se seria provar que não tinha porque desistir. Desejava a desistência: a culpa era sempre dos tropeções. Viver é tropeçar. Caído assim não se vive: it´s a way of death.

Passos distantes, mais pertos. O esforço: virar o rosto. De cima o olhava o pai-de-santo, piedoso-cínico-sábio: a combinação mais humilhante possível. Joe fez uma careta, o pai-de-santo deu a mão: te humilhar é inevitável.

Sentado, fez uma tentativa ridícula de falso prestidigitador: tirar um orgulho da cartola: que é que tu quer? Olhou de soslaio, meio que fazendo pose, meio que temendo o golpe. Veio nada; ou melhor, veio o pior: um conselho, tiro de 12 na cabeça do orgulho:

- Tu ta perdido, fio. Tu não sabe mais de-onde-vem-pra-onde-vai, questão véia nesse mundo. Tu é um clichê ocidental. Só tu que ainda não entendeu o que aconteceu contigo, naquela noite quente recifense. Não é, Zé? Só tu não viu o que é esse sertão, porque tu sempre foi cego pra contigo. Mas tu vai fazer o que? Ficar cuspindo na terra, se escondendo de que? Pra tudo tem jeito, fio. Te levanta, isso. Ta vendo aqueles morro ali? Ali tem sábio véio, o maior ermitão de todos os sertões do mundo. Tu vai lá, pergunta por Capitão Canudinho; ele te dá a resposta pra teus medos. Deixa de frescura e anda, que só assim a gente sai do canto. Por que? Só tu ainda não entendeu, pequeno, porque tu é cego demais, e isso é tua perdição. Tu é o clichê ocidental, já te disse; lembra disso. Mas Canudinho há de te abrir as vista, há se vai; e tu há de ser grande. Escuta o que eu te digo: TU HÁ DE SER GRANDE, JOE! Hahahahaha!

Pai-de-santo gargalhando montou nos exu e saiu voando num pé-de-vento; só então Joe percebeu que estava em encruzilhada.

É nova a velha jornada do herói. No céu só o escuro: a lua se escondia atrás da vergonha. No longe os morros parecem brilhar; não existe caminho a seguir, a escolher. Joe está cansado. Esteve sempre cansado. A vida foi um cansaço imenso, e agora que não sabe de nada, a morte lhe parece o retorno à vida. Joe reencarnou em si mesmo. Joe voltou para o que sempre foi, e é isso que o esgota, esse eterno retorno pessoal. Mas no escuro o brilho salva. Joe é mendigo, mas todo grande santo foi um grande mendigo. Cada passo em direção ao Capitão Canudinho é um passo em direção à salvação. Joe se ilumina, na dor. No chão. Na carne. Joe não sabe que vira santo, mas o coração sabe. Joe é brasileiro. Joe é messias. Joe se salva... e é nessas horas, na vida dos santos, que surge a contramão:

Do chão abriu um buraco: fogo e enxofre. Joe protegeu o rosto do calor com a mão; as risadas feriam os ouvidos. Vermelho, chifrudo, com pata de bode: é ele mesmo, com tudo o que tem direito. Joe se assustou, deu um passo pra trás, mas a perna que já desconfiava manteve o pé firme; alguma coisa nele quer lutar. O outro nem espera: joga a capa pro lado, acende um cigarro, olha nos olhos de Joe e começa seu trabalho:

13: A TENTAÇÃO DO CAPETA OU A PELEJA DE JOE COM O DIABO

Há muito tempo que venho
Esperando por esse dia
De me encontrar cara a cara
Com a vossa senhoria
E poder espalhar maldade
Por toda sua freguesia.

Olhe bem pra essa cara:
Ela é sua tentação
Eu venho espalhar discórdia
Dos santos sou perdição
Porque eu sou o Diabo
Lúcifer, o Satanão!

Depois de falar comigo
O senhor há de se sentar
A sua jornada santa
O senhor há de abandonar
Pois não há santo que me escute
Que possa continuar.

Joe olhou pra Satanás
E ficou admirado
Pois aquele home estranho
Dizia ser o diabo
Mas com a capa e o cigarro
Parecia mais um viado.

O Diabo lá sorrindo
Joe se pos a pensar
Seria mesmo aquele frango
O Diabo a lhe falar?
Sem por muita fé no cão
Resolveu digladiar:

Disse: escute aqui seu moço
Você pode ser o Cão
O Diabo, o Tinhoso
Macumba ou assombração
Satanais ou o Demo
Eu não tenho medo não.
Eu sou Jose Sevirino
O Joe, cabra valente
Vou lhe avisando logo
O senhor saia da minha frente
Que sinão não me seguro
Parto sua cara e seus dente!

O Diabo deu um salto
Soltou bufa, soltou peido
Arrotou nervosamente
Na venta meteu o dedo
E fez, ironicamente:
Aiaiaiaiai que medo!

Joe, moleque velho
Você faz pinta de mau
Coça o saco, fala grosso
Mostrando que é o tal
Mas na verdade não passa
Do clichê ocidental.

Joe disse tudo bem
O que você quer me falar
Satisfeito, o Diabo disse
Tenho muito a lhe ofertar
Ao que Joe respondeu
O que vem o senhor me dar?

D: Venho lhe dar o melhor
Que há nesse mundo oco
E lhe prometo bem muito
Não há de ser nada pouco
De primeira ser mais belo
Do que o Francisco Coco.

J: A beleza que importa
É a beleza interior
Aliás, que ousadia,
Ora, faça-me o favor!
Ta me chamando de feio?
Feio aqui é o senhor!


D: Vê-se logo que o garoto
Não é dos que fácil se engana
Mas pra próxima oferta
Não vai poder dar banana
Pois eu muito facilmente
Encho o seu cu de grana!

J: O dinheiro realmente
É uma bela tentação
Mas é que agora ficar rico
Não é mais minha intenção
Pois eu ando há muito tempo
Com Marx no coração!


D: Se dinheiro não lhe basta
Tenho algo mais profundo
Tu será sempre o primeiro
E nunca mais o segundo
Posso lhe dar o poder
Pra mandar em todo mundo!

J: O senhor é poderoso
Mas não consegue pensar
A melhor coisa do mundo
É comer, dormir e trepar
Se eu mesmo que faço isso
Pra que vou querer mandar?

D: O senhor é mesmo um santo
Difícil de agradar
Mas minha última oferta
Homem algum vai recusar
Te ofereço mais mulher
Que qualquer um pode pegar.

J: O senhor parece esperto
Mas vê-se que burro é o que é
Eu não recusei agorinha
Dinheiro e poder, com fé?
E se eu tenho tudo isso
Eu pego qualquer mulé!

Se eu quisesse tudo isso
Ganhava com minha força e meu canto
O senhor me subestima
E me olha com espanto
Pois percebeu a verdade:
Que eu sou é homem santo!

O Diabo se encolheu
Olhando com irritação
Disse o senhor é forte
Agüentou a tentação
Soube suportar firme
O lero-lero do Cão.

Eu vou voltar para perto
Dos mais fracos que tu
Do fogo quente do inferno
Dos rato e dos urubu
Mas antes faça-me um favor:
Tomá no oi do seu cu!

Dizendo isso o Demônio
Gargalhou meio irritado
Soltou uma nuvem que enxofre
Que encobriu-lhe até o rabo
Quando a nuvem passou
Tinha-se ido o Diabo.

Joe ficou sozinho
Naquele mundo fudido
Pensou em tudo de novo
Que lhe fora oferecido
“Acho que fiz besteira...”
Suspirou, arrependido.


CORDEL É CULTURA!

14: CAPITÃO CANUDINHO

O sombrio da montanha tira o que há de fé no futuro: a consciência de que o fim está próximo é inescapável. O cansaço o move para cima, na tentativa de dele fugir. A cada passo, existem menos pés; em breve só há o vento. O vento é o silêncio.

Perto do topo, a invencível montanha fraqueja uma caverna. Joe se anima. De dentro vibra uma luz: fogo. A fuga do silêncio o leva para dentro: lá pelo menos existe um pouco de apreensão.

O fim da caverna: uma tocha, restos de coisas, uma cama de palha, um trono esculpido na rocha. Ao trono, a rainha: Sabedoria. Um velho em trapos, ar de infinito, a grande barba branca chega-lhe aos pés. O peso da impressão obriga Joe a ajoelhar-se e gaguejar:

- Capitão Canudinho?

O sábio olha Joe intrigado. Não diz nada, e Joe interpreta isso como um sinal:

- Capitão Canudinho, grande sábio, o senhor que tudo sabe precisa me ajudar. Estou perdido, ou morto, ou simplesmente ignorado. Alguma coisa aconteceu comigo, mas eu não sei bem o que foi; só sei que fui arrancado do corpo da minha Mãe, e jogado neste lugar infernal, que talvez seja a expiação dos meus pecados. Mas que pecados tive eu? Sou só fruto das circunstâncias, do meio, do destino, da criação, dos opressores, de todas as forças maiores do que qualquer homem no mundo, sou só correnteza, sou José, o mesmo do séc. 19, sou o clichê ocidental. Como o senhor pode ver, não caí nessa ideologia religiosa de livre arbítrio, e sou um homem bastante instruído. Mas mesmo com minha compreensão das coisas como são, não consigo entender o que acontece comigo agora. Talvez me falte metafísica, ou talvez psicanálise. Não sei Capitão Canudinho. Só sei que desde que eu vim parar aqui, só tomei no fundo do rabo: comi a velha mais desgracenta que o senhor poderia imaginar – claro que isso é só um modo de dizer, o senhor, como grande filósofo, deve imaginar as coisas mais impossíveis do mundo -, me engracei coma filha de um Gigante que depois me fez lutar com um exercito de bandoleiros; por sorte escapei dessa, e fui eleito herói, mas por causa de uma confusão de valores, fui expulso do paraíso quando reencontrei minha Eva. Por último encontrei com o Diabo, ou com alguma bicha doida que se achava o tal, que me prometeu o mundo e o fundo, mas que depois foi embora. Não tenho para onde ir, não tenho o que fazer, quero voltar para minha Mãe, mas não sei mais se ela existe mesmo ou se é tudo ilusão. A realidade se confundiu com o sonho, mas não sei se alguma vez existiu realidade ou se tudo isso, desde o início não é só o sonho. Se for tudo sonho talvez o senhor me ajude a acordar, mas então para onde eu voltaria? Para um outro sonho? A vida é mesmo um sonho dentro de um sonho? Talvez só o senhor saiba a resposta, porque é o mais sábio do mundo, talvez o senhor possa me dizer de eu posso voltar à realidade ou se o melhor é me contentar com o sonho; mas tudo o que eu quero agora, Capitão Canudinho, é escapar dessa loucura que me cerca: o que eu devo fazer, Capitão Canudinho?

O sábio escutou toda a fala de Joe silenciosamente, sempre olhando em seus olhos. Agora ele se levanta, fecha os olhos e caminha. Joe fica de lado, calado, não se atreve a cortar a atmosfera de concentração. Capitão Canudinho se recolhe: ele agora deve meditar sobre o que foi dito.

O tempo tem preguiça; Joe tem tormento: sabe que seu destino depende do que há de vir. 5 horas se passam enquanto Capitão Canudinho pensa a respeito. Finalmente o ancião se levanta e se aproxima de Joe; este não cabe em si. Capitão Canudinho coloca a mão no ombro de Joe, olha-o firmemente, e com a voz marcada pelos séculos da reflexão diz as palavras mais sábias que já se pôde ouvir:

- Foda-se.

Meus olhos brilham: ofusco-me de dentro. Tudo o que não existe agora existe: é simples: é. Alguma coisa acontece com o meu coração: um santo é um santo é um santo. O que fui não importa: isso é transcendência. A vitória acabou, a jornada. A jornada. Eu sei tudo. Uma escada. Algo mudou, não é sua face: é a minha.

É a minha!

15: JOE

Quando está frio, Joe vem devagar. Quando está morno, apenas olhe Joe crescer – tudo ao meu redor. Joé é aqui. Joe é agora. Joe é a tristeza que se sente quando o dia é cinza e dói. Joe é o cheiro de chuva. Joe é toda essa baixaria que é apaixonar-se. Joe é a nora que mamãe pediu a Deus. Quando alguém bate na sua porta, e você não espera ninguém, não se assuste: deve ser Joe. Só um pouco de Joe pode deixar você alegre ou feliz, como o jantar que ele está cozinhando na sua cidade natal. Joe é a galinha, Joe são os ovos. Joe está no meio das suas pernas. Joe está andando na lua, deixando seus casulos. Joe é aqui. Joe é agora. Joe é a macaxeira semiótica. Joe é o primeiro cigarro do dia. Todos sentem Joe quando estão sós. Joe é mentira. Joé é verdade. Alguém psicografou Joe. Alguém matou Joe num conversível, enquanto ele acenava para milhões de esperançosos. Joe sabe nadar. Joe tirou a virgindade da sua namorada. Joe tirou a virgindade do seu namorado. Joe não lava o pé. Joe come criancinhas. Joe é o quebra-cabeça. Joe é a névoa púrpura. Joe nunca fica em um lugar, mas Joe não é uma fase passageira. Joe está no bar dos solteiros, na distância da face. Joe está entre as gaiolas, Joe está sempre num espaço. Joe é aqui. Joe é agora. Joe é o boquete numa garrafa de Pitu. Joe é teoria. Joe é corpus. Hoje em dia não se fazem mais Joe como antigamente. Ninguém é Joe. Joe sou o que Joe és. Joe é o urso. Joe é o filho do urso. As pessoas param Joe na rua para tirar foto. Joe é um escritor cabeça. Joé é as prega de Odete. Ninguém ama Joe. Joe ama todo mundo. Joe fez greve de fome e derrotou a Inglaterra. Joe tocou uma bicicleta. Joe tem uma garagem. Qualquer rocha pode ser feita para rolar se você tiver o bastante de Joe para pagar o pedágio. Joe não tem lar nas palavras ou meta, nem mesmo no seu buraco favorito. Joe é esperança para idiota, quando você anda num cavalo sem casco. Joe é mexido, não comovido, coquetéis no telhado. Joe é José, mas podia ser Johnny, ou Frank ou Pete. Joe não é ninguém. Joe é um espinho no seu pé. Aquele cheira-cola que roubou seu relógio era Joe. Joe é o cão sem plumas. Joe não chora jamais. Joe enrabou um ciborgue e foi preso por isso. Joe inventou a roda. Joe não come ninguém. Joe é aquela culpa que você sentia quando batia punheta para sua priminha. Joe é um merda. Joe é de Racondo. Joe é a mais-valia. Joe bate primeiro e pergunta depois. Eu sou seu pai, Joe. Joe não tem fim, felicidade sim. Quem não tem cão, caça com Joe. Quando alguém quer se masturbar, pensa logo em Joe. Joe é sempre carnaval. Joe é a última dose do dia. Joe goza na cara. Joe tem medo do escuro. Joe está se fudendo até o fim. Joe é o príncipe encantado. O que Freud não descobriu: o complexo de Joe. Joe é o ópio da massa. Joe é um cara feliz agora. Quando você come bem através de Joe você vê tudo vivo. Joe está dentro do espírito com coragem o suficiente para sobreviver. Se você acha que Joe é pretensioso, você foi passado pra trás: olhe no espelho antes de você escolher decidir. Joe é aqui. Joe é agora. Joe é real. Joe é Joe.

Porque Joe já é mesmo batido e conhecido. Mas eu gosto dele.

Recife, Junho de 1988