quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

10: CENA SEGUNDA:

A pomba-gira violinista toca paganini. Junta-se a ela um Tupi, que antes tocava alaúde, mas que modernizou-se e agora toca violão. Joe larga o charuto para escutar mais de perto; a música delicia sua erudição.

JOE:

Ah, a Arte! Como podemos viver sem ela? A Arte é o que nos faz humanos, que nos une com o Sublime, com a Beleza e com a Verdade! Não temos artistas por aqui? O que é a elite sem a arte erudita?

O UFANISTA:

Nós temos o nosso poeta!

JOE:

Onde? Tragam-nos o poeta!

O POETA:

Meu herói, estou aqui!

JOE:

Ó, meu poeta, derramai sobre nós tua sabedoria!

O POETA:

Quero vos falar, queridos, sobre a nova poesia que aflora nos mais altos círculos poéticos! Quero falar-vos de nós, os novos poetas, o que queremos e o que trazemos de novo e de único ao Cânone Literário!

O CABARÉ:

Falai-nos, Ó, menestrel!

O POETA:

(anda até o centro do palco; luz única em cima dele) ARTE é shape. Shape é carne. Carne é sexo. Sexo é arte.

Nova Poesia: defesa do que é mais humano. A linguagem mais sublime do que há de mais grotesco: a verdadeira dialética de nossa existência. Arte pelo gozo pela arte.

Queremos a melodia dos gemidos a propagar-se em ondas pelo que há de mais filosófico nos conventos e de mais religioso nas academias. O estalar de hímens como um Kyrie Eleison para nossa moralidade ocidental. Os neologismos de uma língua feroz movimentando-se habilmente até prazerar-nos com o orgasmo. Mente sã corpo são.

Nova Poesia: o arco de Jean Luc Ponty a masturbar as pernas abertas da Retórica. Sublimação de Eros. Síntese do instinto e da razão: a verdadeira poesia humana.

Queremos mais do que o simples êxtase estético: queremos a junção da carne com o espírito, queremos marcar o livro da história literária com sangue, suor e esperma, queremos a morte da ignorância, queremos o materialismo poético, queremos o pior, o mais sujo e o mais pérfido, queremos o mais vil, o mais orgulhoso, o mais humano.

Só a putaria nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Alfabetize-se!

UM ACADÊMICO:

(enojado) Ora, mais isso é desprezível!

JOE:

(irritado) Como é? Quem é tu pra falar isso do poeta? Mas quem diabos foi que deixou essa escória entrar? Vamos, guilhotinem esse idiota!

Uma trupe de palhaços segura o acadêmico pelos braços e empurra sua cabeça na guilhotina. Revoltado, ele ainda exclama, antes de ter sua cabeça decepada:

UM ACADÊMICO:

Isso não fica assim! Vou colocar tudo isso no meu relatório final!

A GUILHOTINA:

Liberdade, Igualdade, Fraternidade! Tchak!

JOE:

Mas por que pararam a música? Vamos, toquem, eu quero animação!

O TRIO DE FORRÓ:

Xerungudegunburigudiguduraguterecutecutirigudagudummmmmmmmm... parurá!

A POMBA-GIRA VIOLINISTA:

Ziiiimmm... Tirirurin, riririmm...

O TUPI MALANDRO:

Blémblémblóm... tchantchentchun, blimblomblim!

SCHOEMBERG:

Sie spielen sehr gut, nicht wahr?

JIMI HENDRIX:

To achando que falta um pouco de feeling... que cê acha, Arrigo?

ARRIGO BARNABÉ:

Eu AchO Do CaRAlhO!

JOE:

(inspirado) A poesia e a música são as artes mais sublimes que nossa criatividade já pode inventar: uma por dizer tudo e a outra por não dizer nada. Em ambos os casos nós podemos nos alegrar e apreciar sem remorsos a sua completa inutilidade. E se nos identificamos tanto com elas é porque, nesse aspecto, elas nos representam de maneira especial. Pois é o que fazemos, não é senhores, não é essa a nossa especialidade? Sermos inúteis? Servirmos como modelo para os outros? Todos querem, no íntimo, chegar a não servir pra nada, é o topo da escala evolutiva. É o nosso Nirvana materialista.

OS APLAUSOS:

Joe é nosso filósofo!

JOE:

(modestamente) Meus queridos, não precisa tanto. Se digo tudo isso é porque o fato de estar com tão ilustres companhias é inspirador a qualquer intelecto superior. De onde venho não me seria possível ir tão alto nas minhas filosofias. De onde venho é tudo muito pequeno, muito mundano... mas... (indeciso) de... onde... venho?

O NARRADOR:

Para dentro de sua memória ele estava se perdendo. Uma embriagues passadista recortava pedaços de si e os apontava como se fossem de outro: confundia-se com ele mesmo. Juntava-se com a roda da ciranda que dançavam ao som de Henry Cow, mas era criança, adulto, velho e apaixonado. Confusão, loucura, realidade. Num momento sua perna grudou-se ao rabo de um cachorro, mas ele sacudiu a cabeça e tudo foi embora, só havia ficado a roda. A roda era uma só coisa. É fruto da bebida, do baseado, da carreirinha, do pico, dos doces e da porra toda, só pode ser, é preciso não viajar demais. Eu digo, ele diz, mas ninguém sabe. Estamos sós aqui; quem é inocente? Isso é dialogo, e só ele te salva. Meu nome é Bakhtin. Mas você... quem é você?

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