quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

7: DA GRANDE CORAGEM DO HERÓI E DAS CONSEQUÊNCIAS DESTA SUA FANTÁSTICA QUALIDADE

Nem mesmo o sábio Apolo tinha pena do destino do nosso herói e castigava seu corpo hercúleo com labaredas incandescentes. Este agüentava com fleuma sobre-humana o calor opressor, protegendo-se apenas com um chapéu de couro presenteado pelas mãos virginais de sua amada noiva. Olhou para o horizonte filosoficamente e seu olhar presenciou os perigos que a terra inóspita e vermelha como sangue preparava para ele. No entanto, seu coração não estremeceu nem por um instante ao defrontar-se com a ruína dos mortais, e o herói subiu em cima de um rochedo monumental exclamando:

- Não temo fera, fúria ou foice! Antes a morte honrada do que a vida desmerecida! Que venham os vilões, os desastres e os Fados: não importa o que me aconteça, hei de vencer! Sou bravo, sou forte, sou filho da sorte!

A Natureza toda recuou ante a bravura do herói; mas o horizonte continuava à frente, a desafiar sua coragem. O herói seguiu adiante, sem recuar ou desistir, e atravessou precipício, floresta e montanha. Os pés calejados vertiam sangue, o suor escorria por todo seu corpo, o cansaço era terrível; aves de rapina rodopiavam sobre sua cabeça agourando sua contenda, esperançosas de que se tratasse de mais um reles humano comum; mas morreriam de fome se continuassem a esperar que o herói perecesse, pois não poderia chegar assim a morte a um semi-deus e seu destino era maior do que poderia esperar a sua vã sabedoria.

Chegou a noite implacável no mesmo instante em que chegou ao esconderijo dos bandidos o nosso herói. O vigia do bando assustou-se ao perceber que se aproximava tão imponente figura, e, tremendo de pavor, só conseguiu perguntar:

- Quem vem lá?

Saiu da escuridão o herói, e o pobre lacaio quase desmaiou de pânico. Nesse momento poderia o herói ter esmagado o crânio do serviçal com seu punho titânico, mas por ser piedoso, apenas respondeu à pergunta olhando de cima com sua voz de trovão:

- Sou o herói, defensor da justiça e protetor dos fracos, e meu destino é destruir os perversos e acabar com a vileza. Mostrai-me teu mestre, fétido gatuno, e deixá-lo-ei viver como prova de minha magnitude e generosidade!

O pobre diabo não teve coragem para responder, destituído que estava de forças. Mas num esforço homérico, voltou-se e conduziu o herói até a toca dos bandidos. Chegando lá, gritou pelo seu chefe com voz esganiçada e este foi seu último ato, pois logo depois caiu morto de esgotamento.

O chefe do bando era um homem alto e poderoso, altivo em sua maldade e capaz de matar com apenas um olhar. Sua visão encontrou com a do herói, e o mundo pareceu parar enquanto esses dois gigantes se mediam mutuamente. Finalmente o vilão falou:

- Quem és tu, que te atreves a adentrar na morada do grande Siegfried von der Krieg?

E o herói, magistralmente:

- Sou o herói, defensor da justiça e protetor dos fracos, e meu destino é destruir os perversos e acabar com a vileza. Viajei milhares de léguas desde a vilazinha até aqui, com o objetivo de aniquilar de vez por todas com toda a injustiça que vem sido cometida!

- Então tu vieste da vilazinha? – perguntou Siegfried von der Krieg entre os dentes. – Homens!

E então, como que surgidos das profundezas do Tártaro, apareceram os 200 capangas do vilão, vestidos em trapos e empunhando armas afiadas; estavam mais para bestas atrozes do que para homens, imundos e sedentos de sangue e morte, seus olhos faiscando na escuridão tal como criaturas infernais que espreitam a vítima, babando e cuspindo animalescamente.

Ao encarar tal cena aterradora o herói respirou fundo, invocou as Musas e preparou seu melhor discurso:

- Já vos disse anteriormente, sou o herói e não temo o perigo. Travei milhares de batalhas com a tormenta, com a desgraça e com a loucura. Meu destino é exterminar a injustiça, e creio que jamais vi tanta injustiça antes e toda minha existência. Claro está quem comete toda essa miséria que presenciei: os habitantes daquela vilazinha, os verdadeiros vilões em ambos os sentidos das palavras, comandados pelo gigante Coronel que explora e vive da desgraça alheia. Não esperava encontrar-vos neste deplorável estado, vivendo na miséria e na sujeira, sem ter o que comer e vestir, sem o abrigo de um teto para se proteger da chuva, do vento e do frio, sem um lugar para chamar de lar, separados da sociedade e dos bons costumes. Neste lugar esquecido mesmo pelo bom Deus, pai de todos nós, estais vós, encolhidos como animais acuados, protegendo-se da caçada implacável daqueles que vos oprimem, temem e odeiam. Consideram-vos monstros, assassinos e animais, mas não sabem que na verdade eles é que são os monstros, os covardes, que tiraram de vós todo o direito que qualquer filho de Deus possui de conviver pacificamente entre os seus irmãos: é fácil olhar para um mendigo e chamar-lhe de besta; o difícil é continuar mantendo a dignidade quando não se tem o que comer e onde morar. Gritam e praguejam quando vós tirais-lhes de quando em vez algo para comer, algum pequeno enfeite para se produzir, ou quando tendes relações carnais à força com alguma de suas filhas; mas parecem se esquecer que a culpa é toda deles, que vos negaram tudo isso, que vos colocam à margem, que resolveram, por preguiça ou por maldade, simplesmente colocar de lado e fingir que não existe um problema que eles mesmos, junto com esse sistema socioeconômico dominador e anti-humanista, criaram. Não, meus queridos, meus irmãos, não permitirei que essa injustiça continue: vim de muito longe, enfrentando o sol implacável, as montanhas abomináveis, a Natureza destruidora, para poder finalmente acabar com esse abuso. Pois que vim, na minha condição de herói, guiar-vos pelos caminhos terríveis por mim já desvendados e mostrar-vos o melhor lugar para atacar a vilazinha, seu ponto de menor proteção, e destruir para sempre aquela corja de opressores, juntamente com seu líder, o tirano e inumano gigante Coronel. E assim, meus pequenos, poderemos finalmente construir uma sociedade melhor para os que sofrem injustamente, e teremos um merecido lugar para chamarmos de lar, sobre a proteção da Justiça na terra e de Deus nos céus. E tenho dito!

A poderosa voz do herói ressoou por toda a toca. Seguiu-se um silêncio profundo, no qual o herói, com o peito estufado, olhava triunfante para todos aqueles homens, que por sua vez olhavam admirados o herói. Mas logo o silêncio foi quebrado por milhões de aplausos, assobios e ovações, e os homens gritavam em coro: “Herói, herói, herói!”. O herói tornou-se brilhante como um anjo, fez um sinal para seus seguidores alucinados e disse: “Sigam-me os bons!”. E os conduziu em direção à vilazinha, para travarem sua última batalha contra a crueldade, através de montanha e floresta. Mas quando chegaram ao precipício o herói se esqueceu de avisar o que estava adiante, e como a escuridão da noite ainda era profunda, os 201 homens não viram onde pisavam, caíram do precipício e morreram todos.

Na vilazinha fizeram festa por uma semana em homenagem ao grande feito do herói.

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