quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

14: CAPITÃO CANUDINHO

O sombrio da montanha tira o que há de fé no futuro: a consciência de que o fim está próximo é inescapável. O cansaço o move para cima, na tentativa de dele fugir. A cada passo, existem menos pés; em breve só há o vento. O vento é o silêncio.

Perto do topo, a invencível montanha fraqueja uma caverna. Joe se anima. De dentro vibra uma luz: fogo. A fuga do silêncio o leva para dentro: lá pelo menos existe um pouco de apreensão.

O fim da caverna: uma tocha, restos de coisas, uma cama de palha, um trono esculpido na rocha. Ao trono, a rainha: Sabedoria. Um velho em trapos, ar de infinito, a grande barba branca chega-lhe aos pés. O peso da impressão obriga Joe a ajoelhar-se e gaguejar:

- Capitão Canudinho?

O sábio olha Joe intrigado. Não diz nada, e Joe interpreta isso como um sinal:

- Capitão Canudinho, grande sábio, o senhor que tudo sabe precisa me ajudar. Estou perdido, ou morto, ou simplesmente ignorado. Alguma coisa aconteceu comigo, mas eu não sei bem o que foi; só sei que fui arrancado do corpo da minha Mãe, e jogado neste lugar infernal, que talvez seja a expiação dos meus pecados. Mas que pecados tive eu? Sou só fruto das circunstâncias, do meio, do destino, da criação, dos opressores, de todas as forças maiores do que qualquer homem no mundo, sou só correnteza, sou José, o mesmo do séc. 19, sou o clichê ocidental. Como o senhor pode ver, não caí nessa ideologia religiosa de livre arbítrio, e sou um homem bastante instruído. Mas mesmo com minha compreensão das coisas como são, não consigo entender o que acontece comigo agora. Talvez me falte metafísica, ou talvez psicanálise. Não sei Capitão Canudinho. Só sei que desde que eu vim parar aqui, só tomei no fundo do rabo: comi a velha mais desgracenta que o senhor poderia imaginar – claro que isso é só um modo de dizer, o senhor, como grande filósofo, deve imaginar as coisas mais impossíveis do mundo -, me engracei coma filha de um Gigante que depois me fez lutar com um exercito de bandoleiros; por sorte escapei dessa, e fui eleito herói, mas por causa de uma confusão de valores, fui expulso do paraíso quando reencontrei minha Eva. Por último encontrei com o Diabo, ou com alguma bicha doida que se achava o tal, que me prometeu o mundo e o fundo, mas que depois foi embora. Não tenho para onde ir, não tenho o que fazer, quero voltar para minha Mãe, mas não sei mais se ela existe mesmo ou se é tudo ilusão. A realidade se confundiu com o sonho, mas não sei se alguma vez existiu realidade ou se tudo isso, desde o início não é só o sonho. Se for tudo sonho talvez o senhor me ajude a acordar, mas então para onde eu voltaria? Para um outro sonho? A vida é mesmo um sonho dentro de um sonho? Talvez só o senhor saiba a resposta, porque é o mais sábio do mundo, talvez o senhor possa me dizer de eu posso voltar à realidade ou se o melhor é me contentar com o sonho; mas tudo o que eu quero agora, Capitão Canudinho, é escapar dessa loucura que me cerca: o que eu devo fazer, Capitão Canudinho?

O sábio escutou toda a fala de Joe silenciosamente, sempre olhando em seus olhos. Agora ele se levanta, fecha os olhos e caminha. Joe fica de lado, calado, não se atreve a cortar a atmosfera de concentração. Capitão Canudinho se recolhe: ele agora deve meditar sobre o que foi dito.

O tempo tem preguiça; Joe tem tormento: sabe que seu destino depende do que há de vir. 5 horas se passam enquanto Capitão Canudinho pensa a respeito. Finalmente o ancião se levanta e se aproxima de Joe; este não cabe em si. Capitão Canudinho coloca a mão no ombro de Joe, olha-o firmemente, e com a voz marcada pelos séculos da reflexão diz as palavras mais sábias que já se pôde ouvir:

- Foda-se.

Meus olhos brilham: ofusco-me de dentro. Tudo o que não existe agora existe: é simples: é. Alguma coisa acontece com o meu coração: um santo é um santo é um santo. O que fui não importa: isso é transcendência. A vitória acabou, a jornada. A jornada. Eu sei tudo. Uma escada. Algo mudou, não é sua face: é a minha.

É a minha!

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